Uma hora da manhã de domingo. A vontade de decansar pra grande viagem
tentava convencer a cabeça a filtrar o barulho de música e pessoas
conversando vindo do pub no andar logo abaixo. Depois de cinco minutos
tentando, a difícil resolução: era impossível ignorar a bagunça daquela
noite de festa.
- Seguinte, putako, sem condições pra dormir. Ou a gente se junta a festança e viaja no outro dia ou pegamos estrada agora. O que vamos fazer?
A pouca quantidade de notas nas carteiras não deixou muita opção, não havia como pagar mais duas diárias. A viagem tinha que ser naquele dia mesmo, apesar de quatro horas antes do combinado.
Com as malas semi-prontas, não tardou muito a descerem pra pegar as motos. Cinco minutinhos pra dar a volta na quadra e acertarem as contas do estacionamento e já estavam na porta do albergue, prontos para carregá-las com as bagagens.
Foi assim, no início da madrugada, enquanto quatro desconhecidos
deixavam o pub devidamente embriagados, que deram partida nas máquinas e
iniciaram o maior trecho de estrada percorrido nos últimos três meses.
Esses motores só se desligariam de vez 21hs ou 1350km depois.
Vários bairros e um pedágio passaram-se antes de se chegar na saída da cidade. Buenos Aires realmente merecia o título de megalópole. Após 45 minutos rodando sem sair do trecho urbano, uma cena tomou quase toda nossa atenção. Um carro totalmente amassado e ainda chamuscando parado ao canto da pista. Muitas sirenes e luzes ao redor, grande confusão. Imaginem que se Doom invadisse o mundo real, esse seria o efeito de um foguete acertando o tanque do veículo. Aquele pedaço disforme de metal, borracha e tecido ali jazia, inerte, como um aviso aos incautos, talvez um pedido exagerado de atenção redobrada.
Difícil é manter a atenção redobrada num trecho praticamente reto, sem a luz do dia e quase sem trânsito. O frio era intenso, mas não chegava a preocupar, pois a qualquer instante o sol haveria de preencher o horizonte e trazer um pouco de calor e ânimo. Pra despertar mesmo, somente a emoção de passar pela primeira barreira policial do dia.
Já sabendo da possível confusão sobre a falta da maldita carta verde, começamos a conversa confessando a não-conformidade. O oficial escutou com atenção nossas explicações. Em seguida, perguntou sobre as cilindradas das motos e o destino pretendido. Pronto, estavamos salvos! O oficial criou empatia pela situação. Nada de multa, algumas dicas sobre a estrada e uma despedida amigável. Perfeita e efêmera primeira impressão.
O breu do céu parecia não ceder, o frio já se tornava incômodo demais. Por pouco não perdemos a entrada para Zárate, daonde apontaríamos as motos ao norte, começando a cruzar a província de Entre Rios.
Mencione o nome dessa província a qualquer brasileiro (arrisco dizer qualquer não-argentino) que tenha passado por lá para ter uma idéia do terror. Simplesmente todos os veículos estrangeiros eram parados e submetidos a um escrutínio desnecessário pela polícia local. Danem-se as políticas de boa-vizinhança! A ordem parecia ser encurralar as vítimas até resolverem abrir as carteiras.
A dificuldade com a linguagem, a aparente bonança e o desconhecimento dos pormenores da lei argentina tornavam os brasileiros alvos preferenciais. Houve quem quase teve seu carro detido por causa da falta do inútil kit de primeiros socorros, da fatídica mortalha ou do segundo triângulo de sinalização. Isso tudo sem falar nos rumores de um segundo bloco de multas, exclusivo para estrangeiros...
A falta da carta verde culminou em nossa primeira multa internacional. $276,08 pesos (ganhamos um desconto tipo "pague um leve dois") pagos por um recibo que carinhosamente apelidamos de carta azul. Por sorte, esse recibo serviu para nos abonar - tomado com piedade, certamente - nas próximas barreiras policiais, onde oficiais ávidos em cumprir seu dever insistiam que na Argentina os motociclistas deveriam usar calças de couro, assim como luvas e jaqueta do mesmo material. Só faltou pedirem as cuecas também.
Muito asfalto e muitos banhados nas cercanias marcaram esse novo trecho da viagem. A pane seca era a grande preocupação. A boa notícia é que não existem tão poucos postos de gasolina como sugere o guia quatro rodas de estradas, no entanto, não convém deixar de abastecer a cada oportunidade que surge. Uma má decisão desse tipo nos atormentou ao aproximarmo-nos da divisa com o Rio Grande do Sul. Por sorte, encontramos um posto de fronteira quando parecia não haver mais que gotas de combustível nos tanques.
Perto de San Tomé, fizemos uma parada pra confirmar o caminho escolhido. Logo após deixar o acostamento, uns cinquenta metros antes de um posto de gasolina, o asfalto úmido escondia a armadilha. Um bocado de óleo espalhado na pista fez as motos cambalearam como se fossem bicicletas de cross. O pneu traseiro da minha shadow deu umas cinco guinadas antes de, por muita sorte, conseguir recuperar a aderência e estabilizar. Uns dez minutos de descanso foram necessários pra acalmar os ânimos e espantar o susto. Até me lembro de ter empurrado a moto do Thiago pra tirá-la da frente da bomba de gasolina e tê-la deixado cair de tão nervoso.
O que prometia ser a etapa mais bela da viagem acabou virando a mais torturante. Nuvens carregadas anunciavam a chegada de um temporal. O sol encoberto já não esquentava tanto e a qualidade do asfalto parecia diminuir a cada quilômetro. Com o começo da chuva e o distanciamente dos centros urbanos, só restava agarrar-se ao motor pra manter o corpo quente. Com certeza as calças de couro mencionadas anteriormente pelo policial de Entre Rios teriam ajudado nessa hora...
Nesse esse trecho, a temperatura não parava de cair, o temporal não parava de engrossar, a noite não parava de aumentar e nós não parávamos de acelerar, na esperança chegar em um ambiente menos hostil para podermos relaxar. Nos últimos trechos, a concentração era total na estrada. O frio enrugava as mãos e teimava em tirar a atenção do asfalto. Andamos alguns quilômetros gritando como loucos na tentativa de esquentar ao menos os ânimos. A única coisa que nos fez parar (fora os reabastecimentos relâmpagos) foi saber que bastava cruzar uma ponte para chegarmos em solo brasileiro. Foi aí que chegamos em Puerto Iguazu, moídos, sujos, molhados, e no entanto, felizes por encontrar um lugar pra descansar.